segunda-feira, janeiro 03, 2005

Eu Já Vi Este Céu - III

Capítulo III

Nem sempre as coisas correm do modo que nós queremos e planeamos. Na maioria das vezes tudo o que acontece à nossa volta com elevada relevância para o nosso futuro foge ao nosso controle e ainda bem que assim é. De outra forma a vida não tinha qualquer piada, não passava de um conjunto de acontecimentos programados sem qualquer diferença da lógica matemática. A vida é o contrário e deve ser entendida como tal – a anti-lógica!
Estas foram palavras com que ele me presenteou um dia quando o encontrei a passear pela rua olhando tudo e todos, soltando ruidosas gargalhadas aos pequenos imprevistos: uma senhora que parte um salto de um sapato, um senhor que muito engravatado tropeça nos excrementos de um cão, uma criança que rouba um beijo a outra. Tudo o que surge vindo do nada, perfeitamente imprevisível e espontâneo deve ser aproveitado ao máximo pois geralmente não volta a acontecer.
A princípio as suas palavras não faziam sentido. Existem claramente comportamentos humanos que são previsíveis, que ocorrem num determinado sentido sempre que as condições ideais estão reunidas. Não todos mas alguns. E que raio é essa história de que situações espontâneas não se repetem. Quantas pessoas pisam merda de cão todos os dias, quantas senhoras partem saltos, quantas crianças roubam beijos!? Imensas, certamente. De qualquer forma que tem tudo isso de tão especial.
Respondia-me apenas: “Observa a chuva, uma valente chuvada de cinco minutos e conta quantos pingos caem exactamente no mesmo local durante esses cinco minutos. Verás que a resposta é nenhum. É isso que torna a chuva tão bela, não há dois pingos iguais porque os seus trajectos são diferentes e o seu fim é diferente. É um pouco como as pessoas. Somos milhares de milhões e no entanto não consegues encontrar duas pessoas iguais. Até os gémeos são anatomicamente diferentes. Mas se olhares para o interior de cada um, aí ainda ais encontrar mais diferenças.”
Por muito tempo foi-me difícil compreender estas palavras. Pareciam absurdas, pareciam filosofia barata, mas aquilo que tinha conhecido dele contradizia este meu pensamento. Um dia, naqueles dias de Dezembro em que sabe bem ficar quieto enrolado num sobretudo e num espesso cachecol a ver a chuva cair, fiquei vários minutos a olhar o chão seco da calçada que segurava a esplanada do café durante o tempo quente ser molhado por uma daquelas chuvas que fazem um barulho ensurdecedor. Verifiquei que na realidade não tinha visto qualquer pingo que caísse no mesmo sítio do outro, apesar de a certa altura não ter prestado muita atenção. A verdade é que fiquei absolutamente em êxtase com a chuva, com a forma como cada gota de chuva colapsa quando choca com o chão. Parece que cai em câmara lente e se fragmenta em milhões de gotículas de água que se espalham por uma ínfima porção de chão como se fosse poeira cósmica a invadir o nosso universo. É poesia e drama ao mesmo tempo. A certa altura tornamo-nos melancólicos e, de repente um magnífico sorriso invade as nossas faces e tornamo-nos oficialmente amantes da chuva. Para além das histórias e das lições de vida, a paixão pela chuva e por tudo o que é efémero foi a maior herança que ele me deixou…
Recordo-o sempre com saudade, mas recordo-o, e isso é o mais importante a fazer em relação àqueles que partiram. Saber recordar é muito complicado, pois o simples facto de recordar é trabalhoso e por vezes doloroso, mas temos de saber recordar aqueles que amamos e que já não estão entre nós. Atingir a felicidade extrema da recordação é saber equilibrar o peso entre o sorriso saudoso e de satisfação com o peso das lágrimas de dor, mas que já não dõem. Eu sei que está bastante confuso, mas é esse o objectivo. Hoje estou a ficar confuso à medida que as palavras saem dos meus dedos. Hoje estou confuso. Fiquei espontânea e imprevisivelmente confuso e estou a desfrutar desse efémero momento. Não voltarei a ter outro igual. Lá fora não chove para já, mas se chovesse não existiriam duas gotas de chuva iguais!...