quarta-feira, dezembro 01, 2004

Eu Já Vi Este Céu - II

Capítulo II

Nem sempre William fora um vagabundo. Houve tempos em que era um jovem feliz e rebelde que achava que tinha o mundo nas mãos e não precisava de nada nem de ninguém para ser feliz. Nessa altura surgiu uma mulher, surge sempre uma mulher que altera o ruma da nossa vida. Chamava-se Mariana e tinha mais ou menos a idade dele. Nessa altura, segundo me contou, os tempos eram outros, as raparigas diferentes e os sentimentos também. Fiquei com a impressão que me estava a censurar e à minha geração, ou apenas a constatar um facto que julgava eu já ter apreendido.

Era e sempre será um homem misterioso que ora era directo e pragmático, ora falava em enigmas, charadas e provérbios. Por vezes não me apercebia qual o alcance das suas palavras, mas rapidamente aprendi a percebê-lo e a compreender as suas palavras e actos.

Mas estava eu a falar da Mariana. A Mariana foi a primeira paixão de William, que até então, do alto dos seus 14 anos achava que as mulheres se tornavam pouco interessantes ao fim de uma semana, pelo que nutrir qualquer sentimento de apego e necessidade por uma mulher era um perfeito disparate.

Um dia um amigo chegou ao pé dele e perguntou-lhe se ele queria conhecer uma pessoa. William olhou-a de alto a baixo, olhou para os amigos em busca de uma opinião e ao verificar que eles se babavam literalmente ao olhá-la, achou que até era capaz de conseguir aguentar uma semana. No entanto exigiu que ela fizesse metade do caminho para o conhecer. E assim aconteceu. Dois dias depois passeavam pela escola de mão dada e encontravam-se todos os intervalos para darem um beijo e passearem pela escola para que todos vissem que eram namorados, ainda por cima ela era mais velha do que ele. Naquele tempo era assim que se namorava, contávamos quantos beijos dávamos, não é como os miúdos de agora que tentam comer o maior número de gajas por semana e ainda tentam levá-las prá cama para poderem classificá-las com os amigos, era o que ele me dizia sempre que me contava esta história. E eu não me importava de o ouvir contá-la vezes sem conta pois colocava sempre tanta paixão em cada palavra que dizia que eu me sentia fascinado. Por outro lado, sempre que contava esta história acrescentava mais qualquer coisa, não sei se fruto da sua imaginação, se apenas porque das outras vezes não se tinha recordado, o que acontecia muitas vezes pois estava sempre atento ao que se passava à sua volta e sempre a pensar em tudo ao mesmo tempo. Ganhei um pouco esse vício com ele! Voltando à história. Beijavam-se todos os intervalos enquanto passeavam pela escola num percurso que era feito por todos os casais assumidos ou por grupos de rapazes que faziam o percurso no sentido inverso ao das raparigas para se poderem cruzar com elas e trocar olhares, olás e quem sabe se mais tarde não trocariam mais qualquer coisa. No início do dia procuravam-se mutuamente para se beijarem de bons dias, e no final das aulas encontravam-se no portão de saída para irem juntos parte do caminho. Durante uma semana foi assim que decorreu o seu namoro, sem conversas fúteis para além das devidas apresentações e algumas palavras trocadas em relação a música e pouco mais. Mas a pouco e pouco o tempo foi passando e começaram a partilhar mais qualquer coisa que apenas carícias. Partilhavam paisagens, sonhos e chatices que os perturbavam. A pouco e pouco foram tomando consciência de que o outro representava mais que uma mera curte de adolescentes.

Passaram a partilhar os tempos livres durante a semana e depois passaram a encontrar-se esporadicamente aos fins-de-semana. O tempo foi passando e quando deram conta já tinha passado mais de um mês desde que deram o primeiro beijo. Era sempre nesta altura que o via mais triste, com um ligeiro brilho de lágrima nos olhos, mas respirava fundo e já só parava no final da história. Nessa altura os temas de conversa começaram a tornar-se repetitivos e William começou a desejar mais espaço. Sentia-se sufocado, sem espaço para viver, sem hipótese de errar. O comportamento de Mariana também começou a mudar, fazia exigências e birras absurdas (para ele) que colapsavam por completo qualquer tentativa de recordação dos velhos tempos. Um dia. Pouco tempo antes dos dois meses ela chegou ao pé dele e disse-lhe que já não gostava dele, ou talvez gostasse mas não tinha a certeza. Talvez um dia, disse ela Acreditas nesta merda: talvez um dia… Respondi-lhe que também já não sentia nada por ela e que tinha encontrado outra pessoa mais honesta e verdadeira. Acho que para os meus 14 anos até que tive uma saída airosa. Não voltei a falar com ela desde então, mas encontrei-a uns anos mais tarde na Universidade e ela ainda se recordava de mim. Depois de alguns copos disse-me que na altura me achava demasiado imaturo e que fui a primeira grande paixão dela. Mas isso já não interessa. Acho que se casou alguns anos mais tarde com um professor dela. Devia ser uma daquelas galinhas que eles tanto gostam! Estas eram as palavras que entoava em tom de vingança, de justiça feita pelo tempo. Sentia-se mais confortável com o facto de o destino lhe ter dado um certo prazer com a sorte amorosa dela. Sentia que tinha razão naquilo que tinha pensado dela.

Por esta altura pedia-me sempre que o acompanhasse num passeio pelo parque para que em silêncio engolisse as suas mágoas que nunca assumia, para deixar que o rio levasse para o mar as memórias que o atormentavam.

Era muito fácil ouvi-lo contar histórias. Por vezes pressentia o meu mau humor ou a minha preocupação e então escolhia histórias verdadeiramente hilariantes que julgo terem tanto de verdadeiro como de fantasia, mas deixavam-me quase sempre com um sorriso nos lábios. Aquela que nunca mais me esqueci é a história do João Magalhães.

O João é o gajo mais azarado que eu conheci até hoje, com um leque de atrocidades sofridas que não passa pela cabeça de ninguém. Era tão desastrado com as mulheres como com os carros ou com o estudo.

Conheci-o na Universidade e passámos bons momentos juntos, e onde quer que estivéssemos o Joca conseguia meter o pé na argola.

Houve uma vez em que ele veio ter comigo bastante indignado porque o professo de Análise Matemática I não lhe tinha lançado a nota na pauta. “Esta merda não pode ser. Vou falar com o gajo e fodo-lhe o juízo. Fiz aquele exame para ter pelo menos dezasseis e o gajo não me lança a nota. Ele vai ver!” E lá vai o Joca de peito feito ao gabinete do prof. pedir-lhe explicações. Eu vou com ele para ver se ele não fazia asneira. Assim que chegamos bate arrogantemente à porta e entra sem receber licença para tal. Assim que começa a falar exaltado com o professor reparo na cara de admirado do professor e apercebo-me de uma enorme pilha de exames que estava em cima da secretária. Assim que ele acaba o seu discurso com um modesto: “Ou o senhor me lança a nota ou eu saio daqui e vou já directo à reitoria apresentar queixa de si!”, o professor pergunta-lhe novamente o nome e o curso, dirige-se à pilha de exames e diz-lhe:” Até lhe posso dizer já a nota. O senhor teve zero, ou melhor, não teve nada, desistiu do exame.” “Não pode ser, eu fiz o exame todo! O senhor está a gozar com a minha cara!” Quando o professor o Joca vê realmente uma folha de exame com a sua letra e com um declaro que desisto bem legível. Quando olha para o cabeçalho vê que estava no gabinete do prof. de ALGA a olhar para o exame de ALGA a que tinha ido dois dias antes e tinha desistido. Para não dar o braço a torcer o João vira-se muito indignado:”Mas o senhor não é o professor de Análise I. A ALGA já eu sabia que tinha desistido. Muito obrigado!” e sai disparado do gabinete do professor. Eu tive de me conter para não me desmanchar a rir no gabinete. Calmamente lá foi o João ao gabinete do prof. certo e ficou a saber que não tinha saído na pauta pois tinha-se esquecido de preencher o cabeçalho da folha de exame.

Eu delirava sempre com esta história e tentava imaginar a situação e a cara do professor de ALGA ao ouvir tão rebuscado discurso.

Ainda hoje as histórias engraçadas me fazem sorrir. Disse-me um dia que tudo aquilo que nos fica guardado na memória não deve apenas ser considerado informação inútil que um dia adquirimos em sabermos muito bem como nem porquê. Tudo o que, por algum motivo que desconhecemos, nos fica registado na memória e que podemos recordar a qualquer instante deve ser utilizado pois só por essa razão é que nos ficou registado. Dizia-me que não haveria de estar eternamente naquela cidade e que um dia se iria embora porque ficaria cansado de ver sempre os mesmos pássaros a cantar nas mesmas árvores e a mesma água a correr sempre no mesmo sentido no leito do rio. Mas isso não era razão para que as suas histórias não me fizessem sorrir, ouviste-as tantas vezes que já as sabes de cor, e sempre que te aperceberes que estás chateado ou preocupado com algo absurdo deves recordar a história que te apetecer ouvir e conta-a a ti próprio. Assim podes sorrir mesmo que eu não esteja cá. Algum tempo depois da sua partida uma amiga deu-me um desenho com um boneco a fazer birra e disse-me que sempre que eu estivesse a fazer birra com alguém por qualquer motivo deveria recordar esse desenho e acalmar. O que é facto é que sempre que me punha a resmungar com alguém por causa de coisas absurdas, recordava-me daquele desenho com um figurão “a fazer beicinho” e limitava-me a sorrir. Passei a fazer o mesmo com as histórias do William.