sexta-feira, janeiro 28, 2005

Eu Já Vi Este Céu - Capítulo VIII

Capítulo VIII

As semanas foram passando e William sentia-se bem. Trabalhava de noite o que lhe permitia alimentar-se e pagar o quarto. Durante o dia viajava pela cidade e escrevia. Já tinha gasto os dois cadernos que levava para as suas viagens para escrever e o terceiro que comprara já estava quase no fim.
Mas muitos dos passeios não se destinavam apenas à estimulação da escrita ou à descoberta da cidade e da periferia. Passou a encontrar-se mais vezes com Maria e por vezes ficavam juntos desde a hora de almoço até à hora de picar o ponto. Falavam imenso, discutiam maneiras de pensar, discutiam a sua poesia, o país que tinham abandonado.
- Chamas-te mesmo William?
- Não, chamo-me Guilherme, mas os nossos colegas acharam que era um nome complicado e o González achou melhor traduzi-lo e ao fim de uma semana era o William. O Jack foi por causa da Sarah que achava que eu tinha cara de Jack. Fiquei William Jack e acho que nestes dois meses já não respondo pelo nome de Guilherme, acho que sou William até ao fim da minha vida. E tu, chamas-te mesmo Maria?
- Sim, desde nascença e até à morte. Era o nome da minha mãe e da minha avó e eu como nasci rapariga fiquei Maria.
- São horas de irmos.
- Sim.

E assim se foram aproximando até ao dia em que resolveram ir viver juntos. Já tinham passado seis meses desde que William conhecera Maria. Sentia que era a mulher da sua vida e que a seu lado seria feliz até ao fim dos seus dias, em qualquer parte do Mundo.
Maria tinha saído do país por causa da morte dos pais, não aguentava mais e sentia-se a enlouquecer. Um dia, pegou numa mala com meia dúzia de peças de roupa e dirigiu-se à estação. Apanhou um comboio para a capital e passeou durante longas horas até decidir para onde ir. Estava indecisa entre atravessar o Atlântico e ir para um local mais quente e alegre, mas acabou por perceber que não lhe apetecia um lugar quente, mas sim algo calmo e cinzento. Comprou um bilhete de avião e seguiu viagem. Vira num jornal um anúncio para o mercado e decidiu ir ver. Achou piada ao facto de poder trabalhar de noite. Assim podia descansar, passear ou simplesmente dormir durante o dia.

Recordar faz doer a alma, mesmo quando as recordações são boas e as pessoas recordadas nos fazem felizes. Recordamos para tentar esquecer a ausência, mas sempre que o fazemos acabamos por realçar ainda mais a falta que essas pessoas nos fazem, mas repetimos sempre o mesmo ritual de recordar.
O povo português é mesmo assim, gosta de viver o seu fado envolto em melancolia e memórias, gostamos que as memórias que nos dõem fiquem bem marcadas no tempo, e rapidamente esquecemos aquilo que achamos que são as pequenas coisas da vida, como os políticos e as suas políticas. Sabemos certamente como é que Pedro matou os assassinos de Inês, mas não fazemos a menor ideia de quem foi o primeiro presidente da República, nem qual o significado dos feriados nacionais, apesar de sabermos quem é o marido da empregada que anda metido com a amiga da cunhada que é irmã do dono da mercearia que existe na rua do primo do patrão da novela das nove. E assim conseguimos estar entre os mais analfabetos da Europa e ninguém parece estar preocupado com isso pois sempre que falta dinheiro corta-se na educação, que um dia foi paixão e agora está pelas ruas da amargura. E no entanto os nossos cientistas continuam a ir às carradas para o estrangeiro pois por cá só teriam emprego a vender hamburgers, enquanto que lá publicam artigos nas melhores revistas da especialidade.

terça-feira, janeiro 25, 2005

Eu Já Vi Este Céu - Capítulo VII

Capítulo VII


Reli este último capítulo e apercebi-me que muitas destas missivas são fruto de um senhor chamado William Jack que me tentou ajudar a perceber como era o meu mundo, pois ele é diferente do mundo das outras pessoas, que tentou levar-me a pensar por mim próprio para chegar apenas às minhas conclusões e ter apenas as minhas decisões, para que não me arrependesse uma vez que fosse. Dizia-me sempre que eu é que devia perguntar a mim próprio quando é que deveria pensar e quando é que deveria agir. “A resposta está dentro de ti. Quase todas as respostas estão dentro de ti, mas por vezes perdes-te com imagens diversas e esqueces-te do que realmente é importante. É o teu Mundo e nele o importante és tu, e é assim que deves perceber quem és. Depois tens de ter muito cuidado para que possas transpor as decisões do teu mundo para a vida real, e nessa altura tens que ter consciência de que não vives só nesta vida, tens pais, amigos, conhecidos e desconhecidos, e todos eles são importantes na construção daquilo que és e daquilo que serás. Parece uma tarefa no mínimo difícil, mas podes arriscar a dizê-lo, parece impossível, mas na realidade todos estes processos são intuitivos a partir de certa altura. Vive como achares que deves fazê-lo e com o tempo vais sabendo o que fazer com maior segurança, mas nunca procures certezas, elas não existem!”
Acho que ouvi estas palavras várias vezes até conseguir realmente percebê-las. Tive de dissecar cada frase, cada objectivo para chegar à conclusão que não era esse o seu objectivo. Pensei encontrar respostas nas suas palavras quando na realidade todas as respostas estavam, estão e estarão dentro de mim.
Contava-me sempre uma história depois de toda a conversa. Mas sempre que tínhamos esta conversa ele conseguia contar histórias diferentes. Falava-me de mulheres que conheceu, ou apenas de vários sítios que já tinha visitado e que o tinham marcado. Nunca percebi muito bem o que quereria ele com aquelas histórias sem qualquer ligação, mas talvez fosse esse o objectivo, deixar-me a pensar noutras coisas que não a nossa conversa e os seus conselhos. Mas quem sabe…
Recordo-me agora de uma pessoa em quem ele falava muitas vezes. Chamava-se Maria e, segundo ele tinha os olhos mais bonitos que existiam no Universo inteiro. Tinha-a conhecido quando pela segunda vez decidira que este país era demasiado pequeno para o seu estado de espírito e que necessitava de conhecer outras coisas. Como já tinha atravessado a fronteira uma vez, decidiu que estava na altura de atravessar duas fronteiras e um mar. E lá foi ele. Consegui juntar dinheiro a trabalhar como empregado de cozinha de um café. Tinha a seu cargo a tarefa mais importante, segundo ele, que era lavar a louça: “Uma chávena mal lavada e apresentada pode afastar mais depressa um cliente do que o mau humor do empregado que o serve. As embalagens é que vendem!”
Nisso tinha toda a razão e ainda tem.
Quando juntou o dinheiro que considerava necessário para a sua viagem despediu-se, como fazia sempre que trabalhava. Trabalhava com um objectivo e assim que o atingia despedia-se. Com o dinheiro no bolso avisou a senhoria que ia sair do quarto durante uns tempos. Ia viajar e não sabia quando voltava. Calculara o melhor percurso para a sua viagem, um percurso que lhe agradava e que tornava a viagem em si como algo de único. “Se por algum azar tiver de voltar para trás quando faço uma viagem pelo menos tenho sempre a viagem para recordar.”
Não gostava de aviões e só os usava em último caso. Saiu de comboio. Fez várias paragens pelo caminho e chegou mesmo a fazer caminhadas de dias para visitar pequenas aldeias por onde o comboio não passava e cujo único transporte era a carreira semanal que chegava à sexta e partia para a cidade mais próxima aos domingos à tarde. Por vezes ficava alguns dias nessas aldeias. Arranjava trabalho no campo e ficava para conhecer melhor os habitantes daquelas terras e aproveitava para escrever alguns poemas, a sua actividade favorita. Chegava mesmo a dizer que a poesia não era um passatempo, era a sua vida.
Três semanas depois de partir chegou ao seu destino. O nevoeiro e a chuva receberam-no alegremente. As pessoas passavam apressadas para qualquer lado com os seus guarda-chuvas debaixo dos braços. O cheiro das ruas era diferente. Tinha fome e resolveu deixar-se guiar pelas suas pernas para encontrar um local para se alimentar. Entrou num café numa rua menos movimentada e pediu um prato de batatas fritas. Tinha passado demasiado tempo a comer sandes e sopas de lavrador capazes de alimentar um boi que sentia falta da comida de plástico. Saiu, comprou um jornal e começou a procurar um local para dormir durante uns tempos.
Depois de calcular quantos dias podia ficar naquelas águas furtadas sem trabalhar, saiu para passear pela cidade. Descobriu um jardim onde podia passar os seus dias a ver as pessoas a passar e a escrever. Encontrou depois um emprego que o seduziu. Tinha de trabalhar das 23 às 3 da manhã a descarregar caixas no mercado local. O trabalho não era muito duro e fazia-lhe bem o exercício, mas o que mais o seduziu era o facto de o grupo de descargas ser constituído por estrangeiros de quase todas as partes do mundo. Conseguiam-se entender com uma mistura entre as suas línguas maternas e a língua oficial daquele país, e ao fim de duas semanas já falava uma mistura de línguas que se tornara no dialecto daquele grupo de 150 pessoas, homens e mulheres de várias raças e nacionalidades.
Ficou a saber que na Roménia se passava fome e que na Jugoslávia se falavam muitas línguas.
Ao fim de três semanas receberam um novo elemento no grupo. Mais uma mulher que fazia com que o número de mulheres naquele grupo começasse a aproximar-se da dezena.
No final de cada turno de trabalho costumavam juntar-se no parque para comerem qualquer coisa e beberem umas cervejas antes de irem para casa. Conversavam, partilhavam comida que era típica das suas regiões, ou simplesmente partilhavam sandes com quem não tinha trazido comida e lhe apetecia ficar um pouco com os colegas de trabalho.
William prontificou-se a ir convidar a nova colega de trabalho para que ficasse ambientada. Ela não lhe respondeu, mas no final do turno lá estava no parque. Quando começaram a apresentar-se no seu dialecto próprio, William teve a gentileza de lhe ir traduzindo as palavras dos seus companheiros e quando chegou a vez dela falar ficou a saber que era sua compatriota. Ofereceu-se para a acompanhar a casa e conversaram bastante pelo caminho. William já sentia falta de poder falar na sua língua materna.

quinta-feira, janeiro 20, 2005

Eu Já Vi Este Céu - Capítulo VI

Capítulo VI

Descobri por mim que a vida é extremamente preciosa e que deve ser tratada como tal. Nada neste mundo merece que a estraguemos ou que decidamos que está na altura de ela acabar. Mas isso não quer dizer que eu esteja em desacordo em relação à eutanásia, bem pelo contrário. Se é um facto que a vida é uma dádiva, e bem preciosa por sinal, também é um facto que só a nós ela pertence. Foi um presente que os nossos pais nos ofereceram e nada nem ninguém deve ter mais poder sobre ela do que nós próprios.
Enquanto que hoje, naquilo a que muitos podem considerar como o auge da vida, os anos de ouro, eu me sinto honrado por estar vivo e mais ou menos de perfeita saúde, ninguém sabe o dia de amanhã. Quem sabe amanhã não estou prestes a morrer com um sofrimento desmesurado e quero que esse sofrimento acabe depressa. Mas o mesmo se passa com vários jovens que se suicidam, pois consideram que o sofrimento é demasiado para as suas capacidades, e ainda teriam grandes anos pela frente. Mas quem sou eu para criticar quem não conheço, por razões meramente especulativas, só porque esse alguém decidiu que não quer mais ser honrado por uma dádiva?
Como tudo na vida existe um lado positivo e um lado negativo e não há nenhum que esteja completamente certo nem completamente errado. Se por um lado é absurdo prescindir da vida, por outro não há ninguém que possa interferir com essa opção pois a vida de cada um é património de cada um. Não vivemos numa ditadura em que o estado é dono e senhor das vidas dos seus habitantes, nem sequer estamos na época da Santa Inquisição em que Deus era dono e senhor dos destinos de cada um de nós. Trata-se de uma questão de respeitos mútuo enquanto seres humanos. Eu tenho de respeitar quem se quer suicidar da mesma forma que tenho de respeitar quem opta pela vida mesmo que seja de sofrimento. Talvez pareça absurdo que alguém viva dias, ou meses num sofrimento agonizante sabendo que o seu final é um só – a morte.
Passamos demasiado tempo a encarar a morte como um fim tremendo e horrível e tudo fazemos para adiar a sua chegada. Milhares de medicamentos e poções da eterna juventude que apenas servem para que as pessoas pensem que terão mais uns dias ou meses antes de chegarem ao ponto final que faz parte da vida. É como comprar um carro. Quando o compramos achamos que é o melhor do mundo e que é magnífico, mas desde o dia em que o comprámos sabemos que um dia vai deixar de andar, vai “morrer” e não há nada que possamos fazer contra isso. Aquilo que podemos fazer é estimá-lo e gozar cada dia em que o podemos utilizar. A mesma coisa se passa com a vida. Desde o princípio sabemos que não vai ser eterna, pelo que a única coisa a fazer é preservá-la o mais possível e aproveitá-la o mais que pudermos, só dessa forma poderemos chegar ao seu final com consciência tranquila: foi-nos dada uma dádiva e nós aproveitámo-la.
Não estou de forma alguma a tentar indicar um caminho como o melhor e o mais correcto. Quem sou eu para tal ousadia, nem que fosse deus me atreveria a fazer tal coisa. Somos todos diferentes, sentimos de modo diferente, queremos de maneira diferente, pelo que todos devemos viver de maneira diferente, mas o importante é viver, esse é o único conselho que eu dou, talvez não seja um conselho, esta será a única ordem que me atrevo a dar, VIVAM!

Eu Já Vi Este Céu - Capítulo V

Capítulo V

Insónia, insónia e mais insónia. O cansaço percorre todos os músculos do corpo e não permite que o corpo entre em fase de repouso. O cérebro começa a funcionar um pouco mais acelerado e origina uma tempestade indescritível de pensamentos que podiam ser algo de magnífico. No entanto as palavras escorrem pelas folhas sem que um prumo possa ser assente.
Não faço a menor ideia do que é a insónia em termos fisiológicos mas sei o que sinto. Não sei sequer se aquilo me acontece se designa por insónia. Para mim é insónia e pouco me interessam os pormenores fisiológicos e conceptuais.
Fico então aqui sentado de frente a um monitor e vou carregando em teclas que conseguem originar palavras e o meu espanto surge senão quando sou capaz de articular meia dúzia de ideias que até parecem fazer sentido quando em separado.
Não, nada disto está relacionado com o William Jack, ou talvez até esteja. Será que ele é real, será que é apenas mais uma história de ficção que vai gorar todas as expectativas com um bonito final moralista e feliz que satisfaz a grande maioria, mas que deixa de fora todo o conteúdo das páginas anteriores.
Para ser sincero não faço a menor ideia do que vou fazer com todas estas palavras que articulo dia após dia por alguma razão em especial ou apenas, como hoje, para combater a insónia que me assola. Posso dá-las a todos quantos as quiserem ler ou simplesmente oferecê-las aos amigos. Posso até ter a sorte de alguém querer publicar estas palavras na forma de um livro e existir alguém que o compre, e assim as minhas noites de insónia passam a valer dinheiro a sério. Gosto de escrever, e depois. Faço-o por egoísmo puro, escrevo para mim mas comecei a ter a consciência de que um dia alguém pode vir a ler as minhas palavras, e então escrevo também com orgulho, orgulho em mim por ter sido o autor destas palavras que alguém está a ler.
Por definição todos nós teremos o dom da escrita pois somos ensinados a articular caracteres de modo a construir palavras cujo significado consta nos imensos dicionários de língua portuguesa. Somos ainda dotados de imaginação que nos permite brincar com os caracteres que nos foram ensinados e assim criar novas palavras que podem um dia adquirir um uso generalizado e passar a fazer parte dos ditos dicionários. Assim, somos todos escritores, mas enquanto que uns são dotados da capacidade de escrever fluentemente e essa capacidade pode ser aproveitada para fins comerciais, outros escrevem apenas por diversão ou necessidade e guardam religiosamente esses textos para um dia recordar, e quem sabe se um dia alguém não descobre que na verdade possuem o dom da escrita fluente, ou apenas por uma breve ocasião o possuíram.
Quer queiramos quer não o dinheiro governa o mundo em que vivemos. E apesar de não trazer felicidade, ajuda bastante a atingi-la, e digo isto porque não sou hipócrita ao ponto de dizer que a saúde é que é importante e o amor também. Quantas foram as pessoas que por não terem capacidade financeira foram impossibilitadas de ter uma saúde condigna. Quantas foram as pessoas que perderam “amores-perfeitos” porque não tinham dinheiro para extravagâncias. Sim, pareço fútil, mas estou a limitar-me a ser realista. Na verdade a vida de um rico parece ser bastante fácil, mas isso não é significado de saber viver a vida. Tanto um rico como um pobre podem ser felizes, desde que saibam viver com aquilo que têm. Por exemplo, uma pessoa rica deve ter imensos problemas em escolher os amigos. Vivemos numa sociedade de capital e de interesses que é difícil reconhecer quem é verdadeiro e quem está a representar. Enquanto que alguém com menos posses nada tem a dar que não seja a sua honestidade e isso, não há dinheiro que compre a sinceridade e honestidade de alguém. Por exemplo a educação, os valores, não são proporcionais à quantidade de dinheiro que se possui. A educação e os valores podem ser adquiridos, mas têm de ser compreendidos para que sejam aplicados convenientemente, e essa compreensão está relacionada com as capacidades de cada um e não com a sua conta bancária.
Apercebo-me que pareço um comunista a falar sobre os podres do dinheiro. Não é essa a minha intenção, apeteceu-me apenas deambular sobre alguns lugares comuns que resultam de uma certa hipocrisia da nossa sociedade. Não defendo o pragmatismo puro e dura, mas por vezes faz bem observar a realidade e tentar percebê-la antes de cair em lugares comuns que estão fora de moda e já desprovidos de sentido. Não, não sou o dono e senhor da razão absoluta e sei que muitas pessoas estão em desacordo com estas ideias e é isso que é bonito e gratificante no ser humano: podemos expressar as nossas ideias com a certeza que existe alguém que nos compreende e alguém que não concorda connosco, e isso permite-nos discutir sobre o assunto e, se o assunto for discutido de forma construtiva podemos chegar a conclusões que podem melhorar o mundo em que vivemos.
É aqui que reside o problema, as pessoas tendem a apresentar-se como donas e senhoras da verdade absoluta e refutam todas as opiniões divergentes antes mesmo de as ouvir. Desta forma a discussão construtiva não consegue ser gerada e perdemos grandes ideias pelo simples facto de que aquela afirmação é válida e é a única válida!!! Se olharmos para o estado do nosso país percebemos isso: quem governa é o detentor da verdade absoluta e faz o que quer. Quando saem do poder vêm novos detentores de verdades absolutas diferentes das anteriores e tudo muda. Desta forma nunca haverá reforma que tenha sucesso. Será que eles já pensaram em falar uns com os outros com mente aberta!?
Mas também temos coisas boas!

terça-feira, janeiro 11, 2005

Eu Já Vi Este Céu - Capítulo IV

Capítulo IV


Por vezes agimos como autenticas crianças, todos nos dizem que esse não é o caminho e mesmo assim continuamos a andar em direcção ao precipício e nem por um momento pensamos em olhar para trás.
Existe uma criança dentro de nós! Esta é uma frase que todos estamos cansados de ouvir, mas ainda assim não deixa de fazer sentido. A certa altura do nosso processo de envelhecimento todos passamos por uma fase em que nos sentimos a envelhecer e nos recusamos a aceitá-lo. Talvez seja nesses momentos que a criança que existe em nós se apodera das nossas acções e nos torna quase absolutos idiotas que se comportam como se tivessem cinco anos e não fossem responsáveis pelos seus actos. Mas ainda assim temos consciência daquilo que fazemos, mas sentimo-nos tão vivos que somos incapazes de parar, toda aquela despreocupação sabe tão bem que não encontramos qualquer motivo para parar. Mas de repente magoamos alguém porque já nos começámos a comportar como adolescentes exibicionistas e queremos mostrar que já somos alguém, esquecemos que os outros também têm sentimentos e que não são apenas brinquedos que nós podemos usar e rejeitar quando nos apetece.
Mas nem tudo é mau. Errar é quase sempre bom. Aprendemos bastante com os nossos erros e estas fases de pseudo-incosciência são um dos grandes motores do envelhecimento, mas mais do que isso obrigam-nos a crescer.
O William costumava dizer que aquilo que não nos mata torna-nos mais fortes e tinha toda a razão. Dizia também que dificilmente existia alguém neste mundo e no outro que tenha errado tanto como ele, e ainda assim, apesar de já ter errado muito continuava a errar e dizia que não se arrependia um segundo que fosse de todos os seus erros. Faziam parte dele e arrepender-se daquilo que tinha feito, desculpar-se por ser quem era seria a negação da sua existência, a negação daquilo que o torna único e diferente de todos os outros seres vivos deste universo.
Um dia cheguei ao pé dele com a tristeza estampada nos olhos. Cumprimentei-o e comecei a lastimar-me. Uma rapariga absolutamente linda que eu tinha conhecido e que até tinha simpatizado comigo tinha começado a namorar com um conhecido meu e eu tinha passado tanto tempo com ela que estava apenas à espera do momento certo para lhe roubar um beijo. De repente vem um caramelo qualquer e começa a comê-la. Isto não é justo.
Falei longamente nas minhas dores e de como estava indignado com a situação. William ouviu-me sem interromper. Esperou que eu acabasse e no final levantou-se, olhou-me e disse:”Arrepende-te do que fizeste e não daquilo que podias ter feito. Caso contrário passarás a tua vida como um patinho feio no meio de um lago de patos bravos. Olha-te no espelho, avalia-te e toma consciência daquilo que vales. Depois limita-te a agir em conformidade com o teu valor!” Virou costas e foi passear. Fiquei impávido e sereno no mesmo local. Não conseguia pensar em mais nada que não fosse aquela imagem de uma rapariga bonita que podia estar a meu lado…
Fui para casa e só já perto da minha viagem para junto de Morpheu é que as palavras do velho amigo começaram a fazer sentido. Desde então raramente me arrependo do que podia ter feito, mas por vezes ainda acontece. Tem pouca importância se nos sentirmos satisfeitos com nós próprios. Mais importante que o arrependimento é a consciência tranquila. E poder deitar-me dia após dia com a consciência tranquila tem sido muito bom. Todos estes anos depois os conselhos do meu velho amigo têm sido muito úteis.

segunda-feira, janeiro 03, 2005

Eu Já Vi Este Céu - III

Capítulo III

Nem sempre as coisas correm do modo que nós queremos e planeamos. Na maioria das vezes tudo o que acontece à nossa volta com elevada relevância para o nosso futuro foge ao nosso controle e ainda bem que assim é. De outra forma a vida não tinha qualquer piada, não passava de um conjunto de acontecimentos programados sem qualquer diferença da lógica matemática. A vida é o contrário e deve ser entendida como tal – a anti-lógica!
Estas foram palavras com que ele me presenteou um dia quando o encontrei a passear pela rua olhando tudo e todos, soltando ruidosas gargalhadas aos pequenos imprevistos: uma senhora que parte um salto de um sapato, um senhor que muito engravatado tropeça nos excrementos de um cão, uma criança que rouba um beijo a outra. Tudo o que surge vindo do nada, perfeitamente imprevisível e espontâneo deve ser aproveitado ao máximo pois geralmente não volta a acontecer.
A princípio as suas palavras não faziam sentido. Existem claramente comportamentos humanos que são previsíveis, que ocorrem num determinado sentido sempre que as condições ideais estão reunidas. Não todos mas alguns. E que raio é essa história de que situações espontâneas não se repetem. Quantas pessoas pisam merda de cão todos os dias, quantas senhoras partem saltos, quantas crianças roubam beijos!? Imensas, certamente. De qualquer forma que tem tudo isso de tão especial.
Respondia-me apenas: “Observa a chuva, uma valente chuvada de cinco minutos e conta quantos pingos caem exactamente no mesmo local durante esses cinco minutos. Verás que a resposta é nenhum. É isso que torna a chuva tão bela, não há dois pingos iguais porque os seus trajectos são diferentes e o seu fim é diferente. É um pouco como as pessoas. Somos milhares de milhões e no entanto não consegues encontrar duas pessoas iguais. Até os gémeos são anatomicamente diferentes. Mas se olhares para o interior de cada um, aí ainda ais encontrar mais diferenças.”
Por muito tempo foi-me difícil compreender estas palavras. Pareciam absurdas, pareciam filosofia barata, mas aquilo que tinha conhecido dele contradizia este meu pensamento. Um dia, naqueles dias de Dezembro em que sabe bem ficar quieto enrolado num sobretudo e num espesso cachecol a ver a chuva cair, fiquei vários minutos a olhar o chão seco da calçada que segurava a esplanada do café durante o tempo quente ser molhado por uma daquelas chuvas que fazem um barulho ensurdecedor. Verifiquei que na realidade não tinha visto qualquer pingo que caísse no mesmo sítio do outro, apesar de a certa altura não ter prestado muita atenção. A verdade é que fiquei absolutamente em êxtase com a chuva, com a forma como cada gota de chuva colapsa quando choca com o chão. Parece que cai em câmara lente e se fragmenta em milhões de gotículas de água que se espalham por uma ínfima porção de chão como se fosse poeira cósmica a invadir o nosso universo. É poesia e drama ao mesmo tempo. A certa altura tornamo-nos melancólicos e, de repente um magnífico sorriso invade as nossas faces e tornamo-nos oficialmente amantes da chuva. Para além das histórias e das lições de vida, a paixão pela chuva e por tudo o que é efémero foi a maior herança que ele me deixou…
Recordo-o sempre com saudade, mas recordo-o, e isso é o mais importante a fazer em relação àqueles que partiram. Saber recordar é muito complicado, pois o simples facto de recordar é trabalhoso e por vezes doloroso, mas temos de saber recordar aqueles que amamos e que já não estão entre nós. Atingir a felicidade extrema da recordação é saber equilibrar o peso entre o sorriso saudoso e de satisfação com o peso das lágrimas de dor, mas que já não dõem. Eu sei que está bastante confuso, mas é esse o objectivo. Hoje estou a ficar confuso à medida que as palavras saem dos meus dedos. Hoje estou confuso. Fiquei espontânea e imprevisivelmente confuso e estou a desfrutar desse efémero momento. Não voltarei a ter outro igual. Lá fora não chove para já, mas se chovesse não existiriam duas gotas de chuva iguais!...